Gengiva: muito além do seu papel tradicional

Gengiva: muito além do seu papel tradicional

Compartilhar

Por que tanta implicância com essa tal de gengiva? Os editores científicos Paulo Rossetti e Antonio W. Sallum debatem o tema.

Em 2019, a Academia Americana de Periodontologia publicou uma revisão sobre o efeito do fenótipo gengival na manutenção da saúde periodontal1. Resultados: 1) o fenótipo espesso tem melhor prognóstico quando comparado ao fenótipo delgado; 2) pela falta de evidências, não foi possível verificar se a modificação no fenótipo (delgado para espesso) seria benéfica antes de qualquer terapia mucogengival ou movimentação ortodôntica em pacientes que não tivessem recessão ou deformidade mucogengival; 3) também não foi possível associar uma forma dentária específica com influência definitiva no fenótipo.

Mas, por que tanta implicância com essa tal de gengiva? Talvez o (suposto) plano inicial parecesse simples: começar como tecido mole e dar uma “boca” para manter o motor funcionando. Um saco de colágeno cheio de fibroblastos. Imagine-se saltitante e feliz. Em um mundo perigoso, mais do que um par de olhos e ouvidos, necessitávamos de uma armadura resistente. Pronto: algumas partes viraram tecido duro. Tudo que ficou para dentro estava protegido. Do lado de fora, uma cobertura com pelos e sensores. Resolvido? Não. Já que não dava para “mastigar com os ossos”, o departamento de projetos especiais criou os dentes! Como esse lance precisava de uma “parte que cortava” e outra parte que “segurava o tranco”, inventaram mais um tecido que não se parecia nem com a mucosa oral e nem com a mucosa alveolar – esse tecido tinha que ser diferente. Com os dentes dentro dos ossos, em algum momento eles teriam que ser “expulsos”. Então, para que um tecido duro irrompesse em um tecido mole sem problemas, colocaram a solução elegante (união dentogengival, fusão entre as células do epitélio reduzido do esmalte com o epitélio oral) em prática, e apenas parte do órgão (coroa) ficaria exposta. A missão dos engenheiros estava cumprida e cada um que tomasse conta do seu sistema estomatognático.

Sempre existe um tecido mole na jogada. Não é um jogo de empurra, mas é trabalho duro: a interação do mesênquima com a lâmina dentária é capaz de fazer duas fileiras de dentes. Antes do osso ser osso ou o dente ser dente, eles são colágenos. O osso pode ser formado diretamente da membrana conjuntiva ou da cartilagem. O tratamento ortodôntico provoca uma desorganização do tecido conjuntivo e a gengiva simplesmente se avoluma. O ligamento periodontal é um tecido mole altamente especializado. A gengiva prolifera mais rápido do que o osso, e assim precisamos de uma barreira na regeneração. Se uma raiz for submersa, o tecido mole fecha o espaço. Se uma raiz mal posicionada for reduzida em sua porção vestibular, a tendência do tecido mole é fechar o espaço. Em condições normais, se lesionado por corte ou extração dentária, o epitélio gengival tem grande poder de cicatrização, só tendo o fechamento da ferida severamente afetado por medicamentos que inibem a viabilidade, migração e apoptose dos queratinócitos, como os bifosfonatos.

No final da história, tudo indica que a gengiva tem comportamento similar ao histórico evolutivo da raça humana: ou ela fica e tenta (inflamação) ou ela se afasta (recessão). O fenótipo só está “imune” até as mais rígidas revisões sistemáticas pela falta de evidências. Quem sabe nesta década a Biologia Molecular, com todas as “proteômicas” e “transcriptomas” da vida, possa fornecer respostas para essas perguntas que influenciam tanto nossas vidas clínicas.

Referência

  1. Kim DM, Bassir SH, Nguyen TT. Effect of gingival phenotype on the maintenance of periodontal health: an American Academy of Periodontology best evidence review. DOI:1002/JPER.19-0337.